9 de março de 2016

um antídoto contra a amnésia biocultural

Paulo Petersen, sobre amnésia biocultural, modelo agrícola e a atual crise de civilização que passamos.
trecho de "Agroecologia: um antídoto contra a amnésia biocultural.", texto de abertura da edição brasileira do livro "A memória biocultural - A importância ecológica das sabedorias tradicionais", de Víctor M. Toledo e Narciso Barrera-Bassols

Interpretadas pelo prisma hegemônico da teoria da modernização essas resistências locais são consideradas arcaicas e irracionais, colocando-se, portanto, como obstáculos ao desenvolvimento a serem removidos. Ao enxergar irracionalidade onde existem outras racionalidades, os arautos da modernização reproduzem o que o sociólogo Boaventura Sousa Santos denominou de razão indolente, uma forma de apreensão do mundo insensível às ricas e diversificadas experiências sociais que milenarmente alimentaram (e ainda alimentam) a heterogênese das agriculturas no planeta.
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Essa perspectiva positivista da História que encontra sua síntese na noção de modernização agrícola funcionou como uma alavanca ideológica para legitimar novos mecanismos de coesão social no mundo rural. Com isso, cria-se uma miragem de um futuro supostamente virtuoso, que depende mais da ciência e menos das memórias e identidades coletivas. Dessa forma, na orientação do devir histórico, a racionalidade dos meios técnico-científicos se sobrepõe à racionalidade dos fins subjacentes aos projetos de sociedade. A partir dessa inversão entre fins e meios, fenômeno que Max Weber denominou racionalização, a tecnociência assume papel preponderante como força social na conformação do futuro
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Nessa nova gramática do tempo, as memórias bioculturais tornam-se elementos supérfluos e descartáveis, enquanto a modernização agrícola se mostra um experimento duplamente descontrolado. De um lado, porque suas promessas não se confirmaram. Ao contrário, a imposição de um padrão metabólico que desconectou os sistemas agroalimentares da natureza e das culturas regionais desencadeou verdadeiras tragédias sociais e ecológicas. Por outro lado, o descontrole se verifica na ausência de mecanismos de regulação institucional que impeçam o crescente controle dos sistemas agroalimentares por um número limitado de empresas que se movem globalmente e à revelia dos interesses da sociedade, impondo-se como verdadeiros impérios alimentares.
As bases culturais e ecológicas que permitiram que a civilização chegasse ao estágio atual vêm sendo dilaceradas, gerando um perigoso aumento da vulnerabilidade das modernas sociedades. Reconstruir essas bases é uma condição urgente pára a superação da crise de civilização que ameaça o futuro da espécie.
Produzir antídotos contra a amnésica biocultural, é, portanto, um elemento chave para a construção de um paradigma alternativo que permita criar atalhos para a saída da crise. Utilizando a imagem empregada por Sousa Santos, trata-se, antes de tudo, de dilatar o presente por meio do reconhecimento e da revalorização das experiências sociais desenvolvidas a partir da coprodução natureza-cultura. Essas experiências vêm sendo literalmente desperdiçadas como fontes de sabedoria e inspiração para a superação dos críticos impasses civilizacionais.
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A agricultura camponesa é a principal força social que molda dialeticamente essas construções bioculturais. Sempre que operando com margens de liberdade suficientes para reproduzir seus modos de produção e de vida, o campesinato estabelece metabolismos socioecológicos de elevada sustentabilidade e resiliência, uma vez que seus arranjos técnico-institucionais se baseiam em um conjunto de princípios comuns ao funcionamento da natureza: a diversidade; a natureza cíclica dos processos; a flexibilidade adaptativa; a interdependência; e os vínculos associativos e de cooperação.
Esses princípios inscritos nas memórias bioculturais são vetores que impulsionam as trajetórias da inovação camponesa. Essa é a razão pela qual os autores ressaltam a importância das sabedorias tradicionais como elos entre o passado, o presente e o futuro da Humanidade. Defender as memórias e cultivar as sabedorias são tarefas urgentes que cobram um enfoque científico pautado por uma epistemologia fundada no diálogo de saberes: a Agroecologia
o livro ao qual petersen se refere
em espanhol,
la memoria biocultural

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