[Considerada a inimiga número um da indústria de transgênicos, a física e
ativista indiana Vandana Shiva afirma que há uma ditadura do alimento,
onde poucas e grandes corporações controlam toda a cadeia produtiva. E
dá nome aos bois: Nestlé, Cargil, Monsanto, Pepsico e Walmart.
"Essas empresas querem se apropriar da alimentação humana e da evolução
das sementes, que são um patrimônio da humanidade e resultado de milhões
de anos de evolução das espécies", diz.
Crítica feroz à biopirataria, Shiva ressalta que a única maneira de
combater o controle sobre a alimentação é o ativismo individual na hora
de consumir produtos mais saudáveis e de melhor qualidade.
Leia os principais trechos da exclusiva à Folha durante o 3º Encontro Internacional de Agroecologia, em Botucatu.
É possível alimentar o planeta sem usar transgênicos?
O único modo de alimentar o mundo é livrando-se das sementes
transgênicas. Essas sementes não produzem alimentos, mas produtos
industrializados. Como isso poderia ser a solução para fome? Só estão
criando mais controle sobre as sementes. Desde 1995, quando as
corporações obtiveram o direito de controlar as sementes, 284 mil
fazendeiros cometeram suicídio na Índia. Nós perdemos 15 milhões de
agricultores por causa de um design de produção agrária criado para
acabar com a agricultura familiar.
Como mudar a alimentação do modelo agroindustrial para outro baseado na produção familiar e na distribuição local?
As pequenas fazendas produzem 80% dos alimentos comidos no mundo. As
indústrias produzem commodities. Apenas 10% dos grãos de milho e soja
são comidos por pessoas; o resto é 'comido' pelos carros, como
biocombustíveis, e por animais. É possível elevar esses 80% para 100%
protegendo a biodiversidade, a terra, os fazendeiros e a saúde pública. É
apenas por meio da agroecologia que a produtividade agrícola pode
aumentar.
Como as grandes corporações dominam a cadeia mundial de alimentos?
Se você olha para as quatro faces que determinam nossa comida, são todas
controladas por grandes corporações. As sementes são controladas pela
Monsanto por meio dos transgênicos; o comércio internacional é
controlado por cinco empresas gigantes; o processamento é controlado por
outras cinco, como a Nestlé e a PepsiCo; e o varejo está nas mãos de
gigantes como o Walmart, que gosta de tirar o varejo dos pequenos
comércios comunitários e com conexões muito diretas entre os produtores
de comida e os consumidores. São correntes longas e invisíveis, onde 50%
dos alimentos são perdidos.
Temos sim uma ditadura do alimento. A razão que eu viajei todo esse
caminho até o Brasil é porque eu sou totalmente a favor da liberdade
alimentícia, porque uma ditadura do alimento não é só uma ditadura. É o
fim da vida.
Como as corporações chegaram a esse domínio?
Infelizmente, o chamado livre comércio trouxe a liberdade para as
corporações, mas não para as pessoas. As corporações estão escrevendo as
regras e se tornando os governantes.
Os direitos intelectuais acordados entre as organizações mundiais foram
escritos pela Monsanto. Para eles, o problema era que os fazendeiros
estavam guardando as sementes. E a solução que ofereceram foi dizer que
guardar as sementes agora é um crime de propriedade intelectual. É isso o
que dizem as regras da OMC. A Índia, o Brasil, a América Latina e a
África deveriam dizer: 'Você não pode patentear a vida porque a vida não
foi inventada. Pare com a biopirataria'.
Até agora, a revisão dessas regras não foi permitida, o que mostra que
essas corporações ditam as regras. E não é apenas na OMC. A Monsanto
escreveu o ato de proteção para o orçamento nos EUA. O vice-presidente
da Cargill foi designado para escrever a lei de comércio e agricultura
dos EUA.
É possível modificar esse cenário?
A única maneira de reverter essa situação é cada pessoa fazer seu papel
de recuperar a liberdade e a democracia do alimento. Afinal, cada um de
nós come duas ou três vezes ao dia. E o que nós comemos decide quem
somos, se nosso cérebro está funcionando corretamente, ou nosso
metabolismo está saudável ou, se por conta de micronutrientes, estamos
nos tornando obesos. Isso afeta todo mundo: os mais pobres porque lhes
foi negado o direito à comida; mas até os que podem comer porque não
estão comendo comida. Chamo isso de anticomida, porque a comida deveria
nos nutrir. A comida mortal que as corporações estão trazendo para nós
destrói a capacidade da comida de nos nutrir e no lugar disso está nos
causando doenças.
Cada um de nós deve se tornar um forte ativista da liberdade da comida e
das sementes no nosso dia a dia. O que significa que temos que apoiar
mais os fazendeiros e a agroecologia. Devemos ser comprometidos com a
alimentação saudável.
Qual a importância do Brasil nesse jogo?
O Brasil tem um papel muito importante. De um lado, está uma agricultura
altamente destrutiva e irresponsável, mantida pelas corporações,
levando transgênicos, produtos químicos e piorando a fome. Do outro
lado, está o modelo agroecológico, caracterizado pela diversidade,
conhecimento popular, o melhor da ciência, e levando efetivamente comida
às pessoas. Essa disputa está ocorrendo justamente aqui, no Brasil.
Provavelmente, o Brasil tem a maior proporção de diversidade de
alimentos em sua agricultura. No entanto, a maior parte não é usada para
a alimentação humana. Por exemplo, as plantações de cana-de-açúcar e
soja vão para a alimentação de animais e para fabricação de
combustíveis.
O Brasil é parte do que eles chamam de Brics. Eu não gosto de 'tijolos'.
Eu prefiro plantas. Mas é um forte jogador na cena global, e os
jogadores vão decidir como os outros jogam.
Qual o papel da sociedade urbana em relação à agricultura familiar?
É muito feliz. Não porque eu acredito que as áreas urbanas têm mais
riqueza e mais poder, mas porque, por terem mais riqueza, têm mais
responsabilidade. E porque eles controlam a tomada de decisões, tanto em
termos de governamentais como a sua própria atitude em termos de
consumo. Se eles mudassem sua postura de consumo para longe das
corporações, comprando, sim, alimentos dos pequenos produtores, eles
ajudariam não apenas o agricultor familiar, mas também ajudariam a Terra
e seus próprios corpos.
Recentemente o presidente da Nestlé afirmou que é necessário
privatizar o fornecimento da água. Quais as consequências desse
processo?
Tudo que é essencial à vida desde o começo da história, em todas as
culturas, tem sido reconhecido como pertencente à sociedade. E isso
inclui a semente, porque a semente é a base da comida, inclui a água
porque água é vida. E são esses recursos que essas corporações gigantes
querem enclausurar. Essas são as novas inclusões comerciais. Assim como
na Inglaterra, eles enclausuraram a terra, e a tiraram dos camponeses
para terem a revolução industrial.
Hoje, as corporações gigantes estão assumindo os bens comuns que são as
sementes, a biodiversidade, a água. Quando a Nestlé diz que é necessário
privatizar a água, eles estão, obviamente, pensando na necessidade de
aumentar os lucros deles. Eles não estão pensando na necessidade dos
aquíferos de serem sustentados e recarregados, porque corporações
somente podem construir uma economia extrativa. Se eles privatizam a
água, eles vão somente tirar a água para eles, o que significa que as
comunidades locais são deixadas sem água. Então é um assalto.
As Nações Unidas têm de reconhecer que o direito à água é um direito
humano. A Coca-Cola agora quer entrar no meu vale, um vale lindo no
Himalaia, chamado Dune Valey. Em maio nós iniciamos uma campanha porque a
privatização da água por essas empresas de engarrafamento significa,
primeiro, que o direito universal à água é destruído. O aquífero, que
pertence a todos, está agora engarrafado numa garrafa de 10 rupis que
pode é acessível só aos ricos. Os pobres bebem apenas água contaminada.
A segunda coisa é que ela destrói água, e eu não sei por quanto tempo
essa mineração poderá aguentar. A terceira é que ela polui. Sobram
poucas fontes de águas puras, e, se eles realmente se importassem,
deveriam limpar o pouco que sobra, ao invés de roubar o que resta limpo.
Isto é roubo de água e, portanto, um crime contra a humanidade.
Essa dependência da Coca-Cola é um dos vícios da vida moderna. Nós temos muito mais bebidas saudáveis.
Na Índia, começamos uma campanha para as avós ensinassem aos seus netos
as bebidas geladas que elas costumavam fazer. Somos um país tropical,
sabemos como transformar qualquer fruta em uma bebida saborosa: um suco
de manga crua, que é ótimo para prevenir insolação, uma mistura
maravilhosa de sete grãos, que é como uma refeição completa e, se tomada
no café da manhã, você não precisa de mais nada. As bebidas venenosas
que são vendidas pela Nestlé e pela Coca-Cola roubam o nosso dinheiro, a
nossa água e a nossa cultura.
Qual é a forma alternativa à globalização?
Originalmente, o livre comércio deveria reconhecer a liberdade de todas
as espécies e por isso não destruiria nenhuma espécie nem ecossistema.
Originalmente, o livre comércio reconheceria os direitos dos camponeses e
dos povos indígenas e, por isso, não iria cortar as raízes.
Reconheceria também os direitos dos pequenos agricultores familiares e
iria cuidar para que existam preços justos, ao invés de tentar debilitar
o preço por meio de dumping e jogando fora os produtos.
Um verdadeiro livre comércio seria a liberdade para as pessoas e não a
liberdade para as corporações. O que nós temos agora é uma
corporatização global com uma negligência total, uma destruição
negligente e desatenta. O que precisamos é uma consciência livre que
esteja profundamente ciente de nossa interconexão com outras espécies,
outras culturas e com toda a humanidade. Temos que ser conscientes do
dano que fazemos aos outros. Dessa forma, não vamos incrementar o
tamanho de nossa pisada ecológica, mas vamos a reduzi-la.
E, na alimentação, a única forma em que você pode reduzir sua pisada é
de mudar de agroindústria para agroecologia, mudar da distribuição
global para distribuição local, mudar de um sistema violento, que
depende do governo corporativo, para um sistema pacífico, que depende da
comunidade e da solidariedade. No momento em que mudamos para isso, a
pisada se reduz. Podemos ir do industrial e global para ecológico e
local.
Como acelerar o processo de alinhamento entre os vários movimentos para um estilo de vida mais sustentável?
Agroecologistas, camponeses e agricultores familiares são, na minha
opinião, os maiores, protetores do planeta. É o momento de os movimentos
ecológicos perceberem que os verdadeiros ambientalistas são os
agricultores, que realmente reconstroem o solo, que fazem o cultivo de
uma forma que os besouros não sejam mortos, que protegem a água.
E o movimento pela saúde tem que perceber que os agricultores são os
médicos, que fazer crescer comida saudável é a melhor contribuição que
podemos fazer. No momento em que fazemos essas conexões, existe uma nova
vida, porque a vida cresce por meio de inter-relações.]
via folha
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