24 de agosto de 2008

o espelho

o espelho sempre levou o homem a refletir sobre si mesmo, não apenas a imagem, mas filosofias e pensamentos muito profundos a respeito de sua própria natureza. mas é possível que não só o homem esteja condenado a estas auto-avaliações.

apesar dessa afirmação ser bem antropomórfica, a seguir vou falar da habilidade que alguns animais desenvolveram durante sua história evolutiva, e que se expressa na forma de comportamentos bem complexos, apesar de padronizáveis.

o reflexo da própria imagem tem efeitos intrigantes sobre a cabecinha dos indivíduos. uma das coisas mais engraçadas é quando o indivíduo não se reconhece no espelho, acha que o reflexo é outro indivíduo e faz uma seqüência de comportamentos sociais e/ou de auto-preservação, como ameaças ou mesmo a fuga.
minha cadela, rita, muitas vezes fica rosnando pra própria imagem. é um desconforto muito nítido, ela evita olhar no olho do próprio reflexo e devido a esse incômodo acaba por se retirar da frente do espelho, mas as vezes chega a verificar se há alguém estranho por trás do espelho, sem muito sucesso.

a habilidade oposta, porém, é algo que intriga muito mais em termos de capacidade cognitiva, e isto ocorre sem aprendizado. é o que em inglês é conhecido como mirror self-recognition (msr). para um animal ser caracterizado como tendo o msr, deve passar por 4 estágios. na seqüência apresentam: (i) resposta social (como a que descrevi para a rita), (ii) inspeção física do espelho (como a verificação da parte de trás do espelho), (iii) comportamentos-testes repetitivos diante do espelho (para o entendimento do espelho, como movimentos para frente e para trás diante do mesmo) e finalmente (iv) comportamentos auto-direcionados (nesta parte se utilizam marcas, no corpo do próprio animal, que não são visualizáveis sem o espelho, estimulando o animal a tocar ou remover a marca.)
animais sem msr normalmente param nos estágios i e ii, assim como descrevi para minha amiga canina. tenho também uma labradora, que as vezes faz comportamentos correspondentes ao estágio i, e nunca passa disso, pois mesmo dentro da espécie, as respostas a um determinado estímulo pode ser muito variada, diferindo de indivíduo para indivíduo.

esta habilidade é reconhecida em alguns poucos mamíferos.
além dos grandes primatas, dentro do qual nos incluímos, o golfinhos nariz-de- garrafa (Tursiops truncatus) e o elefante asiático (Elephas maximus) também apresentam msr.
porém, na semana passada (dia 19), foi publicado no PLoS(Public Library of Science) Biology um estudo em que descobriram o msr em goldie e gerti - que reconheceram uma marca colorida no pescoço, sob a boca.
o interessante é que esses dois indivíduos não pertence a nenhum dos grupos já mencionados, nem mesmo pertence a classe dos mamíferos. goldie e gerti são na verdade o primeiro caso conhecido fora do grupo dos mamíferos a apresentar tal habilidade. são duas aves da espécie Pica pica, conhecidos em inglês como european magpie, não sei como a chamam no brasil, mas em portugal tem o nome de pega-rabuda, pertencentes à família corvidae.
corvídeos são reconhecidos pelo alto desenvolvimento social e por seu cérebro relativamente grande. é também conhecido pelas habilidades deste grupo no manuseio de ferramentas além de insights comportamentais muito engenhosos, vide video do último post. devido a essa curiosidade aguçada e alta capacidade de observação, este grupo foi selecionado como um dos primeiros grupos de aves a serem testadas na verificação do msr.

a foto acima mostra a marca no pescoço de goldie, que esfregava a parte marcada como se tentasse tirá-la ao se olhar no espelho, removendo a marca.

o msr é reconhecido como evidência da auto-consciência e auto-reflexão, e acredita-se que esteja presente em animais nos quais a empatia e o entendimento social tenham grande importância, como de fato ocorre nos mamíferos que apresentam este comportamento.

marcas de outras cores além do amarelo também foram testadas, inclusive o preto, que serviu como controle pois nas penas pretas era praticamente invisível, confirmando que a marca não exercera nenhum estímulo tátil. de 5 indivíduos apenas goldie e gerti passaram no teste de msr, mas o autor do estudo, helmut prior, afirma que esta é a taxa de sucesso semelhante ao dos chimpanzés.

considerando-se que os ancestrais das aves e mamíferos se separaram há mais de 300 milhões de anos, é bem provável que o msr tenha surgido independentemente na história evolutiva destes animais, provavelmente surgindo devido a pressões sociais. o que corrobora a idéia do aparecimento indepentemente nos dois grupos é que além disso há o fato do cérebro de ave ser totalmente diferente de um cérebro mamífero, provando também que esta habilidade não se limita a uma estrutura neural em particular como o neocórtex dos mamíferos.

todos estes estudos em não-primatas indicam que habilidades "superiores"como msr não é tão limitado como se pensava, e que v. não precisa de uma cabecinha primata para o auto-reconhecimento, que antes se pensava ser exclusivo deste grupo. aliás, não precisa nem ser mamífero.

fontes consultadas:
- the magpie in the mirror, de virginia morell, ScienceNOW Daily News (2008)
- self-recognition in an asian elephant, de joshua m. plotnik, frans b. m. de waal e diana reiss, pnas (2006)
- mirror self-recognition in the bottlenose dolphin: a case of cognitive convergence, de diana reiss e lori marino, pnas (2001)

2 comentários:

Danilo disse...

É... acredito que muitos processos neurais possam ser mais gerais e mais antigos do que parecem. É que ainda não conseguimos identifica-los nos outros organismos. Eu estou tentando descrever o imprinting nas aranhas... MUITO distante dos famosos processos descritos para as aves e mamíferos.
Pensei tb em uma outra coisa. Isto pode ser um surgimento independente gerado pela mesma pressão seletiva que no caso é o contexto social no qual vive o animal, mas ai temos que tomar cuidado pq se trata de processos diferentes em aves e mamíferos, não existindo uma origem comum.

ligia disse...

acho o mais intrigante em ver a rita se olhar no espelho, é notar como ela se incomoda quando percebe o seu reflexo nele... parece uma grande dúvida...