5 de julho de 2009

avoante ou pomba-amargosa (2/2) em edição

finalmente tomei vergonha na cara e retomo este post, da série sinantrópicos notáveis.

anteriormente, abordei o ambiente original no qual a Zenaida auriculata evoluiu, lá no semi-árido nordestino. o que caracterizavam aquelas populações eram a formação de colônias reprodutivas que seguiam o caminho das chuvas e consequentemente da disponibilidade de alimento (extremamente abundante apesar de efêmero e disperso).

sua distribuição natural, como já vimos, abrangia não só o semiárido nordestino, mas outras áreas abertas como cerrado e chaco.

compreendendo esta adaptação a condições ambientais abertos, este animal se aproveitou bastante da expansão das fronteiras agrícolas, que numa perspectiva de ecologia de paisagens significa tornar o ambiente em praticamente um campo aberto, inclusive as áreas que previamente eram florestadas (e que limitavam a distribuição desta ave).

na década de 1950 a avoante se tornou praga agrícola no chaco argentino, no qual alimentavam-se, dentre outras coisas, de sorgo.
devido à má regulação da maquinaria na colheita, as perdas atingiam mais de 30% da produção! isso mesmo: um terço do que aqueles agricultores produziam, era perdido pelo próprio equipamento.
o alimento que ficava no chão servia de alimento para a avoante praticamente o ano todo. esta disponbilidade de alimento aumentou exorbitantemente a capacidade suporte do sistema, mantendo essas populações por boa parte do ano. a plasticidade comportamental deste animal deu conta do recado e as colônias reprodutivas passaram a ser semi-permanentes e não mais temporárias e itinerantes.

é denominada semi-permanente pois em casos de estiagem prolongada e baixíssima produtividade agrícola, as aves desfazem as colônias em busca de ambientes mais favoráveis. aqui vale a pena dizer que estas pombas não se reproduzem apenas em colônias, mas passam por uma mudança comportamental (de reprodução isolada para reprodução colonial) dependendo da concentração do alimento disponível e consequente nível demográfico. por tal motivo, é possível encontrar estas aves mesmo na cidade de são paulo, no qual, apesar de não haver tanto alimento disponível de forma concentrada, há alimento suficiente para que pequenos bandos explorem o alimento.

em córdoba ainda há uma outra característica que chama a atenção. ao contrário das populações nordestinas, as de córdoba nidificam em galhos de árvores, geralmente de matas de galerias, áreas com relevos, ou quaisquer fragmentos de floresta adjacentes as plantações que sejam inapropriadas para agricultura.
por serem áreas agrícolas, a disponibilidade de água é virtualmente inesgotável (enquanto houver alimento) para estas populações.

em diversos outros países sulamericanos houve explosões populacionais desta ave. como na colômbia, uruguai, bolívia e no brasil (vide figura abaixo)

regiões em que ocorreram explosões populacionais associadas a expansão de fronteira agrícola baseado em Bucher & Ranvaud²

a figura acima se baseia num trabalho de Bucher¹, no qual ele analisa alguns padrões dessas populações semi-permanentes e descreve três fatores cruciais para o estabelecimento destas aves em agroecossistemas. tais fatores devem estar presentes em proporções e distribuições adequadas. eles são abrigo, alimento e água.
na verdade, havendo essas condições, praticamente qualquer bicho sinantrópico sobrevive muito-bem-obrigado.
mas no caso específico da avoante, o uso da terra deve seguir esse esquema para formação de colônias reprodutivas¹:

1) Aumento da disponibilidade de alimento devido a práticas agrícolas. Principalmente devido à má-regulagem do maquinário de colheita, chegando a 30% de perda da produtividade. Considerando esta ineficiência, ainda há de se considerar as múltiplas colheitas anuais, permitindo a semipermanência de colônias reprodutivas. Plantas pioneiras, que são abundantes tanto em plantações como em pastos adjacentes, também são importantes como alimento da pomba.

2)Vegetação apropriada para reprodução colonial. Geralmente são resultantes de fragmentos de vegetação florestada não apropriadas ao cultivo, tais como matas de galeria ou em terrenos acidentados. No sudeste brasileiro, a utilização de canaviais para este fim foi uma inovação comportamental notável.

3)Fontes de água de fácil acesso. Geralmente de rios e canais de irrigação.

Para que as colônias se desenvolvam, é necessário que uma proporção mínima da superfície da paisagem seja convertida em plantações, mais especificamente 3% de sorgo granífero ou 10% de uma combinação apropriada de outras plantações de grãos. Fragmentos de mata precisam ter pelo menos 100ha, e dentro de uma distância de 100 km das fontes alimentares. Fontes de água devem distar não mais que 10km dos dormitórios.
Dadas tais condições, o crescimento populacional da pomba é aparentemente independente de outros fatores ambientais.

a exemplo de outras espécies do gênero Zenaida, plantas do gênero Croton são item importante na dieta desta pomba, independentemente de ser no ambiente natural ou em áreas alteradas. esta planta é pioneiraG, então ocorre em qualquer local que apresente condições mínimas para seu crescimento.

já no brasil essas aves eram presentes em cafezais no começo da década de 70, mas não causavam nenhum dano nem chamavam atenção por sua densidade populacional. mas com o passar dos anos os canaviais começaram a ser um bom negócio e teve o boom em termos agrícolas quando o governo passou a estimular esta cultura com o pró-álcool.
nos anos seguintes os cafezais foram abandonados pelas avoantes, que passaram a utilizar principalmente o canavial para abrigo e reprodução.
o canavial serve como substituta da vegetação espinhenta do semi-árido, oferecendo proteção contra predadores (principalmente aéreos), e assim como lá, nidificam no chão. a pressão seletiva para a existência desse hábito é o mesmo, então, a simplicidade do ninho e o investimento baixo, deve compensar o risco de predação.

de fato, o ninho é praticamente virtual, pois umas poucas folhas de cana são utilizadas e servem praticamente pra demarcar o local em que o ovo está.

no sudeste brasileiro, a situação agrícola era semelhante ao descrito para o chaco, havendo falhas na maquinaria que permitem populações enormes de avoantes.
os principais danos causados por esta pomba nesta região se devem ao pouso dos bandos em plantações de trigo e arroz, no qual o acamamento (dobra dos caules) impossibilita a colheita pela maquinaria. além disso há predação de cotilédonesG de plântulas de soja, o qual dano nunca foi quantificado, apenas estimado em grande perda.

a expansão agrícola no território brasileiro ainda é crescente, assim como em toda américa do sul emergente. os esforços para o desenvolvimento em questões de bioenergética apenas estimulam seu crescimento, porém a falta de planejamento do crescimento e a negligência de informações especilizadas como a de que a própria ineficiência do maquinário resulte na manutenção de populações de espécies-pragas, resultam em medidas de manejo ineficazes, como tentativas biologicamente inócuas e economicamente exorbitantes de se retirar o máximo possível de indivíduos, ninhos, ovos e filhotes de uma área afetada. em medidas como estas é necessário tirar mais do que a natureza já tiraria, ou seja, deve ser relativamente maior que a mortalidade. no caso da avoante, isto significaria mais de 75% duma população. considerando-se colônias de cerca de 5 milhões de indivíduos, isto é impraticável (apesar de tentativas terem sido feitas).

não sei como estão atualmente a eficiência do maquinário brasileiro, mas dado a estabilidade de populações de avoantes no estado de são paulo, é possível inferir que ela não tenha melhorado tanto. isso soa até ridículo quando comparamos com a agricultura de países como eua, no qual o desperdício é ínfimo, e o maquinário hi-tech (calibrado com altíssima precisão, gps e o escambau) dá conta do recado. além disso há de se considerar que as fronteiras agrícolas de lá são muito bem estabelecidas, não havendo grandes avanços geográficos desse tipo de uso da terra.

G
plantas pioneiras: são as primeiras espécies vegetais numa sucessão ecológica, geralmente constituídas por plantas que chamamos popularmente de ervas daninhas.

cotilédone: folhas modificadas presentes em angiospermas que servem de reserva nutricional para o crescimento inicial de uma planta.

¹ Bucher EH, 1990. The influence of changes in regional land-use patterns on Zenaida Dove populations.
² Bucher EH, Ranvaud, 2006. Eared dove outbreaks in South America: patterns and characteristics.

Um comentário:

Eng. Agr. Rafael Salerno disse...

Muito bom o post! Pesquise no google e no youtube sobre Dove hunting pra ver como argentinos e uruguaios estão lucrando com esta praga enquanto o IBAMA aqui mantêm os agricultores tendo prejuizos nas lavouras...mais info tbm no meu blog www.plantadiretobrasil.blogspot.com