9 de abril de 2020

Perspectiva alimentar da produção capitalista e a externalidade de mais uma pandemia

Esse texto é um ensaio em construção baseado em um entrevista que dei.

Rever os sistemas de produção alimentar é essencial para a promoção de uma alimentação saudável, com produtos provenientes da agricultura familiar e camponesa que garanta o acesso por todos. O modelo massificante e padronizante é o causador ou incubador de muitos dos problemas sociais, ambientais e alimentares que enfrentamos na atualidade. A comida esconde muita coisa que passa despercebido a olhos pouco treinados. Ressignificar as narrativas e tornar o invisível visível continua sendo um dos maiores desafios nesse campo, principalmente por conta das complexidades envolvidas.

É comum relacionar a problemática com o mercado de carnes ‘exóticas’ por ser algo diferente da nossa realidade, o que torna essa visão preconceituosa, ainda mais se associada ao perigoso discurso de guerra à virose (conforme alerta o antropólogo Umberto Pellecchia), como tem ocorrido em muitos canais de comunicação, induzindo a busca por um inimigo causador. A verdade é que o modelo que permite o surgimento dessas doenças é o próprio modelo intensivo (conforme a tese de Rob Wallace, autor de ‘Big Farms Make Big Flu' em entrevista ao Climate and Capitalism), muito praticado em países europeus, nos Estados Unidos e mesmo no Brasil, aqui principalmente com granjas gigantescas de frangos engaiolados. 

O modelo industrial vigente é o absurdo da agricultura que vai marginalizando as produções menores que vão sendo engolidas pelas grandes produções que visam a todo custo gastar menos e produzir mais, resultando em genéticas monótonas e que fornecem tais características em detrimento de diversidade, de rusticidade, de sabor, de saúde, de qualidade. Com isso vai-se naturalizando gradualmente práticas diversas e impensáveis (ou que eram impensáveis até um passado não muito distante) em produções de pequena ou média escala, tais como o uso compulsivo de antibióticos, de confinamento de grande quantidade de animais em espaços muito restritos, de privação dos comportamentos naturais esperados desses animais, da naturalização de mutilações para evitar os perigos dos comportamentos totalmente alterados pelas condições em que os animais vivem, de critérios de saúde animal que visam a sobrevivência em condições sanitárias extremamente higienistas e tecnificadas uma vez que pequenos problemas que surjam podem tomar proporções desastrosas. São diversas as externalidades negativas que valem o risco correr, já que os problemas são sempre democraticamente socializados, já que a real pandemia é o capitalismo.

Políticas públicas efetivas e ecologicamente adequadas são imprescindíveis para promover essas alterações no modelo produtivo, que por sua vez promoveria a soberania alimentar e genética.

Sem dúvida é difícil com um olhar ocidental, sobre uma cultura bem diferente da nossa, dizer o que outro país deve fazer. Dizer isso seria leviano e colonialista. De fato esses mercados são vitais para a subsistência e segurança alimentar e nutricional de milhões de agricultores familiares, comerciantes e consumidores. Ainda assim, parece haver uma fetichização e mercantilização do consumo de animais silvestres, seja para alimentação ou medicação, não sendo possível generalizar que este seja um hábito de todas as pessoas da maior população humana da Terra.

Mas ao recapitularmos um pouco, temos um impulsionamento desse tipo de produção numa história muito recente. O modelo mercadológico ao qual esses produtos foram adaptados são sem dúvida muito mais nocivos do que os produtos em si. Evidências científicas divulgadas em publicação na Lancet indicam a possibilidade do mercado de Wuhan sequer ter sido a origem do contágio em humanos do Covid-19 ou ainda que poderia ter havido mais de uma origem, o que torna ainda mais difícil condenar esse tipo de prática. 

A produção brasileira de carnes figura dentre as principais commodities produzidas e exportadas pelo país, motivo pelo qual o poder econômico e político do setor é gigantesco. No entanto se avaliarmos os diversos custos ambientais, sociais, culturais, tributários e de saúde pública, para nos ater a apenas alguns aspectos, temos enormes externalidades negativas que são totalmente negligenciadas e que superam os ganhos econômicos com que o setor possa por ventura contribuir. 

Mesmo na situação dos mercados molhados (wet markets) da China onde os animais silvestres são comercializados, temos a lógica da expansão sobre as matas primárias, tanto pela expansão da fronteira agropecuária como pelas incursões de busca e captura de espécimes silvestres para o comércio, aumentando o fluxo de pessoas e outros animais, colocando-os em contato muito próximo. Isso junto ao confinamento em massa e condições sanitárias precárias são condições ideais para a incubação das mais diversas viroses, permitindo o transbordamento de doenças de uma espécie a outra, como foi o caso do novo coronavírus.

A alternativa já defendida e praticada por muitos é a manutenção da floresta em pé. Essa é a forma como, desde há milênios, alimentos em abundância são fornecidas para seres humanos nesses ecossistemas. Desde que bem manejada ela pode continuar a oferecer alimento como um subproduto florestal imprescindível para os povos que ali vivem. No entanto, mesmo havendo um manejo adequado, um dos maiores desafios do abastecimento na região amazônica são as distâncias, com logística muito complexa e custosa. Daí a relevância de se fortalecer as cooperativas e centrais de comercialização da agricultura familiar a fim de superar tais dificuldades. Além disso, políticas públicas adequadas que garantam o Direito Humano à Alimentação Adequada, prevista em nossa Constituição Federal, também é essencial para amenizar tais custos, que poderiam vir, por exemplo, na forma de subsídios e renúncias fiscais e outras diversas facilidades concedidas a setores economicamente dominantes.

As atividades de desmatamento, promovidas por setores do agronegócio (junto a madeireiras e mineração) vão, em poucos anos, trazer enormes prejuízos para o próprio setor, colapsando o regime de chuvas nas regiões Centro-Oeste e Sudeste do país, que são bastante expressivas na produção agropecuária. Muito se fala na Amazônia em termos de desmatamento, mas essa é também uma dura realidade da financeirização das terras em todo o país, e talvez até mais gravemente num dos biomas mais antigos do planeta, o Cerrado, que também sofre gravemente com impactos desse setor produtivo e não apresenta condição ecológica suficiente para se regenerar. Ainda assim projetos como o Matopiba – de expansão da fronteira agropecuária sobre o Cerrado dos estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia – seguem a todo vapor devastando toda sociobiodiversidade lá existente. O Brasil é o país mais megadiverso do planeta e culturalmente aprendemos desde cedo a não dar muito valor a essa diversidade, e por isso muitas vezes perdemos uma infinitude de formas de vida muito antes de conhecer suas potencialidades. 
Matopiba: Terra arrasasda no Cerrado nordestino
Sem dúvida que a produção e consumo de carnes precisam ser reduzidas drasticamente, comer menos e melhor ('less, better'), como prenuncia a campanha Slow Meat. A agricultura familiar e a agroecologia são bons exemplo da alternativa possível e necessária da forma de se produzir, de organizar socialmente, de comercializar e dar acesso a alimentos diversificados, em sua maioria produtos vegetais, mas também de derivados de origem animal. Boa parte do abastecimento já é realizado pela agricultura familiar e pelos  empreendedores agrícolas de pequena e média escala, muitos desses acabam utilizando o pacote tecnológico fomentado pela indústria química e de sementes por falta de assistência técnica que busque eliminar a dependência desses insumos. 

A solução não seria uma dieta baseada exclusivamente em vegetais, mas numa baseada em biodiversidade ('biodiversity-based diet' para contrapor o 'plant-based diet', que muitas vezes são apropriadas pelas grandes indústrias, inclusive agrotóxicos e de carnes). Quando se tem um modelo produtivo biodiverso, há menor ocorrência de doenças na produção, menos consumo de insumos, mais mão de obra empregada, mais nutriente ingerido, circuitos de comercialização mais curtos, respeito à sazonalidade. Passamos a nos reconectar com os ciclos e limitações da natureza, a qual custamos em entender que integramos, aumentamos nossa saúde e resiliência e também a dos sistemas produtivos. 
Toda cidade tem em seu território ou no seu entorno  agricultores familiares, agroecológicos, produtores artesanais e de pequena escala. Geralmente eles são a solução que temos próximos mas que nem sempre estão facilmente acessíveis por não terem canais de comercialização estruturados. 

Em tempos de pandemia, com as entregas em domicílio em alta, os grupos e células de consumo responsável tem se tornado uma estratégia importante para manter o abastecimento da cidade e da renda no campo e assim enxergarmos o invisível: o valor de quem produz o alimento que comemos três vezes por dia.


Algumas iniciativas de âmbito nacional que valem destacar é da rede jovem do Slow Food (SFYN), do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) ou ainda o Open Food Brasil. Localmente diversas outras iniciativas também têm surgido e vale buscar pelas organizações e movimentos atuantes em cada território para saber mais.

Existem muitas realidades da quarentena, desde pessoas que estão em família ou numa estrutura comunitária (das mais diversas classes sociais) onde há suporte mútuo entre as pessoas, aquelas que estão confinadas em apartamentos minúsculos nas metrópoles ou ainda da realidade das periferias onde não é possível realizar adequadamente as recomendações de quarentena nem de higiene por falta de saneamento básico e acesso à água potável. Desse último grupo ainda é necessário grande solidariedade de outros grupos sociais pois são os primeiros que sofrem com o avanço da pobreza e fome e desmonte das políticas sociais. Vale acompanhar o G10 das Favelas, que tem ainda uma campanha de financiamento coletivo para estruturar os empreendimentos locais e dar apoio assistencial. Organizações da sociedade civil ligadas aos temas da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) e de agroecologia têm cobrado ações do Estado para que essa situação não se agrave ainda mais. Leia as cartas do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) e da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) para saber mais.

As possibilidades alimentares são de toda natureza e aquelas que não sabem cozinhar e não têm ninguém com essa aptidão no círculo social mais próximo tende a piorar sua alimentação.

É claro que se você tem aptidões culinárias e está disposto pode aprender muita coisa e se esse é seu caso, precisa buscar saber mais o que você alimenta quando se alimenta. Comer pode ser um processo educativo permanente onde é possível conhecer coisas novas a todo momento. E nesse sentido expandir o olhar para além do alimento em si, e pensar mais amplamente de onde vem, quem e como produziu, qual o impacto na saúde e no meio ambiente são reflexões importantes que esse momento pode potencializar para alguns públicos específicos.

A ruptura do modelo produtivo é o mais desejável já que 'não podemos voltar a normalidade já que a normalidade é o problema', como dizia a projeção no Chile ou é 'uma crise mortal' como diz Naomi Klein. No entanto o que está em acirrada disputa são pelo menos outros dois modelos, de este ser uma momento excepcional e voltar à 'normalidade', ou de acelerar os problemas uma vez que para as classes dominantes, eles ainda são insuficientes, vale a leitura da reflexão de Rafael Evangelista em A distopia da aceleração está a caminho?.

No entanto, se atendo à perspectiva mais otimista, a da ruptura, essa é sem dúvida uma oportunidade sem igual na história recente onde as classes mais privilegiadas estão em quarentena e tendo que lidar com um cotidiano caseiro com o qual muita gente não estava preparada nem habituada. Se de fato conseguiremos aproveitá-la para melhorar a alimentação e as relações de exploração que estão postas, será possível avaliar somente retrospectivamente. Pelo menos na alimentação, muitas pessoas estão recorrendo a aplicativos de comida pronta com entrega em domicílio (que muitas vezes são de alimentos não-saudáveis) e ultraprocessados (que definitivamente fazem mal a saúde), que geralmente ainda são alimentos sem proveniência rastreável. O conforto dessa alimentação é o conforto da alienação, onde as pessoas são habituadas apenas a conhecer o preço que aparece no caixa do supermercado e da alienação para o descaso é um pulo, como lembra Michael Pollan em O Dilema do Onívoro. A alienação é peça fundamental para que uma alimentação adoecedora e geradora de pandemias continue acontecendo com frequência cada vez maior.

Então precisamos somar esforços para as escolhas individuais influenciem esferas maiores e que o consumo de alimentos in natura e minimamente processados produzidos pela agricultura familiar contribua para a estruturação duradoura de cadeias curtas de distribuição e comercialização, e que aproximação a produtores fortaleçam laços e de políticas públicas adequadas para superação da insegurança alimentar e nutricional se tornem perenes. A mudança que era impossível pode se tornar inevitável nas próximas semanas.

Precisamos acabar com essa equação maldita: destruição de habitats (onde patógenos ocorria como espécie secundária e sem causar problemas) + expansão de fronteira agropecuária (interface entre tais doenças e atividades humanas como também com setor madeireiro e da mineração) + pecuária intensiva (onde incuba e alastra as doenças) + alienação sobre os sistemas produtivos (que garante a manutenção do modelo que gera o problema) = combinação perfeita pra surgimento de pandemias e sua recorrência.

Cabe a cada um e à coletividade fortalecer para que esses aprendizados não sejam ocasionais, se assim de fato conseguirmos consolidar tudo isso, passamos a ter um futuro um pouco mais promissor adiante.

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