17 de outubro de 2009

comida é pasto

quando pensamos no sistema de produção e distribuição do alimento, raramente vemos pela perspectiva ecológica [como "ecológica" entendo a interrelação das partes vivas com as não-vivas, assim como de cada parte consigo mesma; tudo resultante de uma história evolutiva]. aqui tentarei fazer algumas considerações interessantes sobre o assunto.

pra começar, a alimentação e a reprodução são, ao meu ver, os dois aspectos mais cruciais da vida. com a reprodução elevamos a probabilidade de manter os genes na população mesmo daqui a várias gerações - afetando o conjunto de genes dessa população (pool genético) -, mantendo ou mesmo elevando o que chamamos de fitness. e com a alimentação obtemos energia para nos manter vivos, aumentando a probabilidade de ter um sucesso reprodutivo.

acho que o modo mais claro para entender o sistema atual de produção alimentar é a partir da a evolução do próprio homem, e assim perceber como chegamos ao ponto em que estamos, e mais que isso, perceber o que estamos fazendo e para onde este modo de vida está nos levando.

o gênero Homo e o H. sapiens
pertencemos a espécie Homo sapiens, que ironicamente significa homem sapiente. se analisarmos os nossos ancestrais humanos (Homo ssp), veremos que apesar de sermos os únicos humanos atuais, outros já vagaram pela superfície do planeta.

o gênero Homo, da família Hominidae, surge há cerca de 2,5 milhões de anos, no sul e leste da áfrica. o homem sempre ocupou nichos marginais da savana africana, desenvolvendo adaptações fisiológicas, anatômicas e sociais interessantes. pelos registros fósseis se observam diversas aquisições evolutivas até o surgimento de nossa querida espécie, dentre elas podemos destacar o bipedalismo [acho o termo mais apropriado que bipedia, pois bípede só quer dizer que o bicho fica sobre duas patas, já o bipedalismo dá a idéia da locomoção por meio da alternância das pernas]. esta mudança permite ao homem abandonar o hábito arborícola e utilizar as mãos para fazer movimentos manuais finos. por toda a linhagem humana, verifica-se um gradativo aumento do volume encefálico, isto é, crescente volume do cérebro. este aumento está intimamente ligado com o aumento da capacidade cognitivo-simbólica [que originam fala, escrita, gramática, artes, religião, dentre tantas outras coisas demasiado humanas], ocorrido no paleolítico superior (num período entre 60 mil e 10 mil anos atrás conhecido como período da revolução cultural).


liberdade das mãos para manipulação de ferramentas e armas
dawn of man - cena de 2001: uma odisséia no espaço, de stanley kubrick


a alvorada do homem, apesar de toda essa história evolutiva não tem um cenário muito animador, éramos apenas uma espécie de primatas nômades no meio do semi-árido africano, motivo pelo qual somos generalistas-oportunistas e onívoros, sendo indefesos isoladamente apesar de um poder virtualmente infinito quando em grupo. antes da grande diáspora humana (de saída do continente africano), o homem é quase extinto, se não fosse sua capacidade de representação gráfica para indicar a localização de recursos.

a capacidade de habilidades manuais finas permite o desenvolvimento da tecnologia, principalmente de caça e de guerra. armas são forjadas pela primeira vez a partir de pedras lascadas (na famigerada Idade da Pedra), nos dando uma perspectiva fértil na obtenção de alimento e território. outras habilidades do homem são bem generalistas: não corre muito rápido, não é muito grande, não nada grandes distâncias, não sabe voar, não escala muito, mas é bastante resistente em atividades moderadas de longa duração. a utilização desta habilidade se torna a principal estratégia para caça, permitindo ao homem vencer uma caça pelo cansaço (ao contrário da estratégia de atacar uma presa com o fator surpresa e matar com relativa rapidez, comum em diversos predadores).

a carne de caça tem um significado único, não apenas visceral (biológico), mas a partir do desenvolvimento cognitivo já mencionado, adquire um valor simbólico afetando toda estrutura social e política do homem. o retorno dos caçadores obviamente é comemorado com festa e muita carne, ritual semelhante que ainda ocorre entre humanos. um domínio tecnológico paralelo a tudo isso é o do fogo, que permite a existência da culinária, associando a carne caçada pelos machos com elementos vegetais coletados pelas fêmeas do bando.

revoluções agrícola, industrial e verde
entre dez e cinco mil anos atrás ocorre a revolução agrícola do neolítico em diversos locais independentemente, como meio de controlar os recursos alimentares necessários as sociedades humanas. esta é uma agricultura rudimentar, na qual as espécies escolhidas, tanto de plantas como de animais, são apenas incorporadas na sociedade humana, de forma a se ter fácil acesso ao alimento. desta forma, o homem deixa, pela primeira vez, de ser nômade, fixando-se em rudimentos de cidades, baseados no núcleo familiar. a domesticação de ruminantes é o passo crucial para a consolidação tecnológica que precede a expansão agrícola. a domesticação propriamente dita, ocorre posteriormente, quando os recursos agropastoris passam a sofrer intenso manejo para a produção de alimento e não apenas agregados à sociedade para controle de recursos.

se observarmos por esta perspectiva evolutiva, percebemos mais facilmente que as mudanças ocorridas nos últimos 2 milhões de anos, faz do sistema de obtenção de alimento, um fator decisivo no desenvolvimento populacional da espécie humana.

conforme o tempo passa o homem se torna o animal que conhecemos e, desta forma, podemos traçar um elo do alimento com várias dimensões da existência humana: biológica, econômica (relação de trocas), sócio-política (estratificação e divisão do trabalho e concentração de poder), cultural e também ambiental (através da modificação de paisagens inteiras).

a desestruturação social da perda do núcleo familiar [ouso dizer que a partir do renascimento], faz com que encaremos um dilema evolutivo do que somos com o que nos tornamos culturalmente. mas é somente a partir da revolução industrial que o sistema produtivo adquire novas feições, alterando completamente a estrutura social do homem. a agricultura de comodities passa a ser expressiva, principalmente os alimentos estimulantes como chás, cafés, açúcar e chocolate, servindo como a base alimentar para a dependência químico-tecnológica da sociedade.

a revolução industrial introduziu também a monocultura para produção em larga escala de alimento para suprimir as necessidades alimentares das populações industriais, cada vez mais crescentes e pela primeira vez as paisagens se tornam domesticadas. o grande impacto de monoculturas, assim como de qualquer homogeneização da biodiversidade, é que, dentre outras coisas, os seres que constituem o sistema passam a ser mais susceptíveis a doenças, pelo fato de haver uma condição demográfica que favorece a livre circulação de patógenos, tornando-os mais nocivos do que num sistema com maior diversidade. isso podemos ver não apenas na agricultura, como também em cidades, nos quais os indivíduos de uma população ficam muito mais próximos, gerando também uma infinidade de fatores estressantes. os fatores estressantes nos grandes centros urbanos são causas de violência e doenças crônicas, afetando enormemente a qualidade de vida dos indivíduos que o constituem.


substâncias químicas eram ameaças constantes na segunda guerra.
porteriormente se tornou ameaça constante na alimentação. foto

a resposta para diversas patologias, na produção de alimentos, veio com a Revolução Verde. esta revolução ocorre no período pós-guerra, com diversos avanços nos estudos de substâncias químicas ocorridas durante a guerra provenientes de pesquisas que foram feitas principalmente com o fim de se produzir armas químicas. essas substâncias são o que conhecemos atualmente como agrotóxicos, e estão sendo progressivamente evitados pelas pessoas conforme se conhece os efeitos nocivos tanto de toxicidade humana (carcinogenia, doenças neurodegenerativas) como de ecotoxicidade (que em última análise causam a toxicidade humana).

o último salto tecnológico que percebo nessa linhagem é o surgimento de transgênicos da engenharia genética por meio do DNA recombinante. porém ao contrário dos passos anteriores, este não visa primariamente o aumento da produtividade para a segurança alimentar, mas para fins nitidamente mercadológicos a produção de plantas resistentes a patógenos e pragas.  esta tecnologia é uma faca de dois gumes e atualmente há diversas plantas modificadas geneticamente que ajudam o produtor a ter maior produtividade, ao passo que há empresas detentoras de patentes de organismos geneticamente modificados (OGMs) que praticamente escravizam os pequenos produtores, juntamente a isso, a segurança biológica é questionável, tanto para a saúde humana como para o meio ambiente.

o discurso da segurança alimentar é uma grande farsa em países não miseráveis, o brasil é um exemplo crasso e assim como uma das piores distribuições de renda do planeta, a distribuição de recursos alimentares também é bem tosca. boa parte da produção de alimento é perdido na colheita, estocagem, transporte, doenças/'pragas' e outros processos que existem entre o produtor e o consumidor final.

outros problemas ecológicos existem para a segurança alimentar, necessitando manejo cada vez mais intenso e minucioso. é necessário se preocupar com os lençóis freáticos, cada vez mais contaminados com fertilizantes, biocidas e tantos outros químicos ainda usados amplamente em países em desenvolvimento; além disso, o manejo adequado do solo e de serviços ecossistêmicos como a qualidade do ar, da água e da vegetação são cruciais para que se mantenha o mínimo de qualidade de vida do homem.

algumas opções atuais me parecem bem plausíveis na produção de alimento para o homem, indo da permacultura à agricultura de precisão, passando pelo agroflorestamento.
a permacultura é uma idéia bem natureba, mantém a diversidade local sendo uma ótima opção para pequenas produções, produzindo e distribuindo localmente recursos de forma pouco impactante aproveitando as condições ambientais que um determinado local oferece. com custo baixo, e disponibilidade de recursos para subsistência.
a agricultura de precisão, é o extremo oposto, com monoculturas extremamente mecanizadas, com a aplicação de tecnologia de ponta (i.e. de alto custo) como colheitadeiras munidos de gps e outros quitutes que permitem aproveitar ao máximo a produtividade de um determinado local, considerando todos os recursos e manejando-os de forma a não estragar o solo, fertilidade, água, etc.
já o agroflorestamento eu desconheço o quanto é aplicado. a idéia básica dele é intercalar linhas de cultivo com árvores, associando os benefícios que os dois tipos de cultura podem proporcionar.

o paradoxo que surge é que a demanda por alimento é óbviamente grande, mas a produção é ainda maior e mesmo assim muita gente passa fome. grandes extensões de terra para o plantio de commodities além da perda da diversidade cultural e biológica parecem estar nos guiando a um beco sem saída. nesse cenário de miséria geral e tecnologia e conhecimento para se dizimar tantas desigualdades a pergunta talvez seja: até quando o homem vai patrocinar a fome do outro? a ausência desse questionamento por parte de quem só ganha nesse jogo é simplesmente desanimador.


comida é um luxo, foto

para onde este sistema de produção está nos levando ainda não está muito claro, mas não precisa ser um gênio para perceber que a humanidade como um todo não anda muito bem das pernas, mas as consequências disso (não apenas ambientais, mas socio-político-economica) começam a se revelar aos poucos. a ocupação do homem no uso da terra é crítico para a manutenção da qualidade de vida, mas é necessário muito mais planejamento e administração por parte dos governos, e maior crítica e exigência por parte das pessoas com algum acesso às informações. esta provavelmente seja a maior contribuição que podemos fazer como cidadãos.

este texto é resultado da reflexão suscitada por aulas de botânica econômica, de biologia evolutiva do homem e de antropologia.

3 comentários:

Fábio Lúcio disse...

Acho que o meio ambiente deve ser a preocupação CENTRAL da ação antrópica no ecossistema, e não o próprio homem, ou seu futuro, etc.

Acho também que todos deveríamos nos posicionar contra o sistema, dsa melhor maneira que pudermos, e acho que selecionarmos melhor nosso alimento é um bom começo.

Sim, sejamos vegetarianos, sim.

glenn makuta disse...

se o meio ambiente for o ponto central da questão, então podemos esquecer todo o bafafá a respeito dessa febre "ecológica", pois uma vez que o ecossistema se vira muito bem, qualquer impacto que causarmos será inócuo, basta virmos a questão na escala correta, isso é, no tempo geológico. a terra já passou por pelo menos 5 extinções em massas que dizimaram mais de 90% das espécies, e recuperou muito bem a todas elas. demorou de 5 a 10 milhões de anos mas recuperou, com toda exuberância, sua diversidade.

por isso discordo de v. e acho que o ponto central deve ser o homem. só assim podemos agir na escala de tempo necessária e plausível com todo os esforços que valem a pena: pela qualidade de vida do homem, a boa qualidade do ambiente vem como consequencia disso.

Alexandre disse...

tb acho que o ponto central é o homem. a natureza (ou seja lá como vcs chamam) é uma balança que se equilibra sózinha. mecheu aqui ela reage ali. o homem é o grande problema. nessa de ficar "desequilibrando" a natureza, quem vai rodar somos nós mesmos. tanto pelas mãos dela como nossas próprias.

puts glen. ia colocar aqui uma justificativa para o homem ser do jeito que é. mas vou deixar num post que vou fazer.

gostei do texto meu. se foi ready made puts....vai se fude.
só não acho que o que somos e vivemos hoje foi em função do alimento. não que vc tenha falado isso (não me lembro) mas acho que o alimento zuo em função do que somos.

da hora mesmo muleque ;)

e sim iéte....sejamos vegetarianos, sim =)
não sei como ainda mas sim.

weeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee